segunda-feira, 28 de março de 2016

Filho

- Filho, já disse... desce da árvore. Tenho que te dar de mamar.


E a mãe com os seios fartos de leite, pingava pelos campos, semeando pequenos miosótis. O filho, colocado sobre o galho pelo vento, decidiu-se por ali como casa. A mãe, angustiada, chorava, pedia pro filho vir ao encontro de seu colo. O filho adquiriu garras e apreço pela árvore, que o nutria. Nasceu um broto de seu ouvido esquerdo e do alto de sua moleira, uma flor inédita, matizada em roxo e vermelho. A mãe decidiu escalar a árvore. Seus pés se lascavam, sangravam. A árvore a rejeitava, fazendo cair pedaços que rapidamente apodreciam, galhos que cresciam espetando a mãe, abelhas ordenadas que se endereçavam aos cabelos da jovem mulher.

Farta, sabendo-se não mais dona de seu bebê, a mulher criou raízes no chão, rasgando o solo e puxando toda a energia da terra, secando assim seus miosótis. Seu corpo se metamorfoseou em casca dura - lascas que normalmente demorariam anos pra se tornarem brutas. Suas mãos se fizeram galhos altaneiros, mas a mulher-árvore continuou seca, sem folhas. Seus dedos de pau fincaram na outra árvore, que aos poucos foi secando também, sendo consumida sua seiva.

O filho, vendo sua mãe em tal esforço, chorou, mas de seus olhos caíram folhas outonais. E foi secando, virando um galho quebradiço e gordo.

A mãe amaldiçoou a natureza.

Página 24

Lavínia precisava decorar seu texto: 37 linhas rebuscadas de tédio e fala esquizofrênica. Andava pelo apartamento apertado, entre móveis e acervos de outras peças que guardava, entre figurinos em sacolas cheirando à naftalina e entre espelhos – porque gostava de se ver falando. “Christofer, não há porque sonhar... a ilusão é tão irrisória...” – repetia, repetia, repetia. E sempre falhava. “Tenho tudo nas mãos, mas tudo escorre como água pelando” e outras balelas mais...

Sentava-se na privada de seu banheiro lilás e repetia as frases do autor desconhecido. Tomava seu banho relembrando o texto e algumas barreiras da produção, em silêncio, enquanto a água escorria pelando por seu corpo frouxo. Estavam ainda em estudo do texto, leituras brancas (quase apagadas), na mesa, em conversas - não haviam começado os ensaios de marcação. Lavínia adorava marcar, ser dirigida e sentir-se surpresa com alguma fala do diretor, como “use isso a seu favor. Aproveite essa angústia e encontre o olhar da personagem nessa fala. Vem vindo da direita alta, em passos lentos.” – e isso fazia com que Lavínia se sentisse uma deusa dos palcos. Mas ela pescava as frases em silêncio, para passar uma ideia de humildade.

Chegando à sala de reunião, estava Everaldo, diretor formado em universidade, com um cigarro à boca e trajes suados - Lavínia cria em qualquer palavra que saísse de sua boca amarrotada. 

Conversaram sobre Pâmela, sua personagem sofrida, enquanto esperavam por Agnes - uma atriz mais velha e com pequena experiência no teatro, de muitos anos atrás - e por Leandro - um ator jovem, franzino, esquisito e inexperiente, de lábio leporino e olhos verdes, a quem Lavínia deveria beijar ardentemente na página 24 do roteiro. Quando todos chegaram, dentro de um atraso já esperado, sentaram-se, fumaram, tomaram café, água, comeram um biscoito vagabundo que Lavínia levou para a leitura. Depois leram a peça, discutiram cada fala com propriedade de quem disseca os sentimentos mais falsos de um ser humano inventado. Sonharam com a peça perfeita, em preto e branco, enquanto sustentavam a ilusão de suas personas.

Foram todos para suas casas, lendo os textos pelos caminhos, nos ônibus, nos metrôs, nas ruelas. E chegaram em casa, mas só Lavínia pôs-se ainda a sentar na privada com a personagem, a banhar-se projetando filmes de perfeição cênica, a rondar vestígios de outras realidades construídas no aperto de seu apartamento frio. Somente Lavínia deitou sua cabeça pesada num travesseiro de espuma gasta e chorou com Pâmela. Não sabemos se emocionada com o destino dramático da personagem amarrada a um amor impossível – Christofer, que nada se assemelhava a Leandro, em suas fantasias - ou pela impossibilidade de ser outra coisa em sua vida. 

37 linhas rebuscadas de tédio e fala esquizofrênica para viver outra vida.

Estelar

Quando as estrelas alcançaram seus olhos, tenho certeza de que você habitou um pensamento raro, que poucos acessam, porque nem todos têm essa consciência poética que faz levar aos recônditos espaços de quimera e encanto. Há essas sensações feitas de brilho que esperam que nós nos encantemos com intensidade. E quando a gente se entrega ao trivial e vê que nele há toda uma existência, a gente permanece perplexo diante de um estrondo de vida. Se sente único e besta por pertencer a algo único. É agora. E estrela tá ali todo dia, presente no céu, querendo mostrar-se. Mas ver é algo diferente. A gente se acha possuidor de olhos, mas poucos os têm de fato. Uma brisa, uma lua, mil estrelas e essa praia batendo na mesma hora num saco de sentidos que trago comigo aqui. Tudo isso é feito de espanto. E eu nem sei o que sou e o que serei. A gente é boba demais por se configurar. Se gosta ou desgosta, mas tudo é a mesma coisa, gente pulsando e cheia de medo, desejo e incompreensão. Mas parece que entendo o mundo quando sei que entrando em contato com tudo isso que a gente não percebe assim tão vivo – porque a gente se acostumou de ver – é que o estalo da vertigem se estabelece. Eu quero sentir-me vivo.

Quando o mundo se fez revelado diante da sua presença, tenho certeza de que você sorriu, porque sua alma é boa. Você nem deve ter se dado ao luxo de comentar com alguém, porque quando se passa uma sensação ela morre instantaneamente. Quem adquire um segredo é incapaz de reproduzir. Ele passa como eletricidade em cada parte do corpo e da boca não passa mais. A resistência queima.

Você soube da Terra e dos anjos todos alados que riem de nossa insapiência. Segredos ancestrais. Quero saber do que você soube, mas através do teu sorriso. Será que seus dentes abertos soam como as estrelas? Porque olho pra elas e me encanto, sim, mas não sinto essa vertigem que só alguns merecem. Talvez o seu sorriso me encante mais que primaveras e estelares armações. Podem cair estrelas do céu. Daí faço pedidos e acho bonitinho o rastro. Mas parece-me que olhando esse rasgo que surge da sua fascinação, eu me deleite de forma superior. Talvez cada um olhe a vida de forma espetacular diferente. Pra mim o seu lábio construindo essa razão feliz me diga mais que todo o universo sorrindo em especulações de brilho e eternidade que vagam na escuridão noturna do véu que se desvela. Eu sou um ponto de interrogação com a entonação mais fácil de dar.

domingo, 27 de março de 2016

Arandelas


 

Já está acesa a pontinha da espiral verde. Durma bem. A fumaça sobe ligeira, como que defumando o ar. A noite parece tranqüila e no ar vão quedando os pernilongos inchados de sangue, dopados. Existem três esmagados na parede da cabeceira da cama - borrões vermelhos da arte efêmera da chinelada bruta. Nas arandelas, do lado de fora da casa, um cemitério de mosquitos cansados e zonzos da diversão de luz. A rede, sob elas, balança vaga, porque a brisa parece brincar e se deitar. A quietude se mostra no silêncio de estrelas que estão muito distantes, mas que parecem saber de tudo o que acontece por aqui. As crianças dormem profundamente nos colchonetes empoeirados. Amanhã será dia de sol. Eu estou de olhos abertos olhando o escuro, que aos poucos vai se acendendo por me acostumar. É só não ter medo. Fico pensando que não tenho uma carta de amor de palavras concretas pra ler nessas horas. Só lembranças que sempre se misturam à fantasia da minha cabeça que não pára. Insólita insônia. O vento vai sendo cuspido do ventilador de teto e o barulho não vai me adormecendo. Ele me acorda e me liga com suas pás de moinho. Noite de Quixote. Uma colcha madrigal de chenile na metade do corpo, os pés descobertos com os dedos precisando de um retoque de esmalte e cheios de loção anti-mosquito. Uns zumbidos, vez em quando, no caracol da orelha. Fico pensando nos zumbidos de amor ao pé do ouvido, quando uma boca se colocava inteira com minha orelha dentro. Parecia concha, ressonância. Vou pensando nisso e desabando. Durmo só, cheia de calor, esperando a manhã. Tonteio e apago, sono dormido e pesado, vagueando por sonhos intranqüilos que me lembram de coisas que queria esquecer. Um café quando acordo, marcas de travesseiro no rosto, um filho já na rede. Levanto numa energia veraneia. Sopro as arandelas e os corpos dos mosquitos vão se espalhando pela varanda. Eu queria ter uma carta agora pra começar o dia. Vamos à praia.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Mira comigo

A vida não passa rápido. A gente que se acostuma. Dizem pra fincar raiz com tudo, mas nunca ensinam a desabar a árvore. É um aprendizado de momento, mas que se prepara também previamente. A árvore, em sua potência, já sabe subir, ser celular coletiva, obediente e constante. Faz parte da sua constância virar adubo, lar de cogumelos, ser matéria para o novo se fazer. E é este o ensino. Apenas fazer, mas não um despropósito. Fazer potente, lar de Deus: ser. E deixar de ser sendo. Desacostumar. Essa é a chave do parar o tempo. Quem para o tempo, ganha do tempo. Não se acostumar com a vida, deixar tudo sem medo, partir para partícula renovar. A vida passa e só. A vida nunca morre, tudo se transforma, se transenergiza.

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Miro:

Um vale de um cânion vasto, terra em níveis, grande buraco. O por do sol tinge tudo de rosa. Fim de tarde. Me lembra Marte, uma paisagem arenosa. Um deserto em paz. Quando vejo, estou ali, olho ao lado, na frente, atrás, pessoas esparsas, bastante gente, mas que não faz volume. Até parecemos poucos. Uma aqui, outra ali, outra acolá. Cada um na sua. Todos quietos, em silêncio, olhando para a mesma direção, para o além desse grande buraco. Um ser, uma cabeça gigante aparece neste lugar e revela que fomos convocados para estar ali. Esse ser com ares nobres, turbante, surge não tão material, mas é bem visível em sua energia. Tem uma barba curta, olhos verdes, talvez. Ele nos fala brevemente sobre o momento de transição da Terra, que buscam soldados prontos, para isso ali estávamos. Ele nos solicitou a missão de vibrarmos na corrente do amor. Mas não somente isso. O amor como uma arma poderosa que, utilizada, imobilizaria intenções adversas facilmente. Amor como energia de cura, para domar qualquer mal que viesse do outro, qualquer situação. Essa arma era potente e estávamos habilitados para usar ela. Mas para usar, saber distinguir, o que realmente é o mal. Habilitação concedida para o poder.

E ele nos disse: -Vocês que vivem se enredando em padrões e hábitos, pois é da natureza da mente de vocês, devem utilizar o amor como um vicio, como competição, como um jogo. Assim, a mente entenderá que não há espaço para outra coisa. Jogue consigo mesmo, faça o bem virar a chave única de energia. Use essa arma do amor também contra vocês mesmos. Não parem de jogar.

Depois sua cabeça flutuante fez como um gênio da lâmpada desaparecendo, ou como um balão de gás escapando o ar: foi diminuindo e rapidamente, em um rastro energético, se recolhendo para dentro da terra.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Árvore

Não chora não, neném, não chora não. E a mãe a balançar o neném a ponto de golfo. Estava quente e tudo suava. O neném, sem dúvida, a sentir o peso do mundo, sentia o magma incandescente, o profundo do planeta, desejava o fresco. Chora não, neném. E a mãe ganhava aos poucos as sobrancelhas enternecidas e piedosas de Maria. O mundo ruía, se roía, era puro ruído. E estava surdo. O ônibus passou encrencando com outros veículos e seu motorista estava em ebulição como o neném. A buzina também chorava e era um lamento de tormento duro. Tudo se rasgava por existir. A mãe ao mesmo tempo lia ali o futuro de sua própria velha e regressava à infância, mirava o vazio e entrava dentro do neném que de nada daqui sabia. Não chora não, neném. Era uma prova de fogo... E ia vibrando o colo, puxando a energia do astral sem saber de magia, de misticismo, de alquimia. E assim, a mãe melhorava o mundo. Melhorava, pois, por dentro também chorava - não por si, mas por ver o mundo batendo no filho. E compreendia, sem ter nada a fazer, e assim acalentava toda a dor que nascia. Compadecia o dia. Eu estava no ponto de ônibus, esperando meu condutor que também podia chegar chorando e ali pude penetrar os lagos frescos dessa mãe: virei seu filho. Rápido. Decidi logo deixar os lagos, deixar tudo isso pro neném que era dela. Nada ali era meu, eu não podia. Não era herança minha, eu que me meti. Fugi com o olhar trôpego, mente expandida e caí novamente no mundo, no ponto: de ônibus, nevrálgico, de ebulição, de fuga, de espera, final. E como fiquei tonto.

Quis tudo tocar e queimei minhas mãos porque o mundo estava ardendo em febre. Eu que estava cansado de mim, sem possibilidades de me fazer outro naquele instante, senti minha coluna se desverticalizando e querendo deitar no chão, virar cidade. Tudo me sugava para baixo, o cimento me queria. Eu que não merecia, eu que buscava ajuda, firmava a mente pra poder voar daquele ponto, eu que estava carente do mundo e abracei uma árvore às quatro horas da cidade, uma avenida cheia, preta, carregada das camadas de passado, cansada de andar por ela mesma, pude parar o tempo e lamber a poeira, ouvir o ruído, não me conter. Abracei a árvore por não ter mãe ali pra abraçar. Todo o mundo era neném, e tudo derretia. Eu que estava vata, pitta, kapha, eu que estava vasto, eu que estava peso. Eu que era tudo o que podia reunir no ponto não aguentei, chorei de guela arranhar e ninguém ouviu porque nada ouvia. Queria ser Buda como aquela árvore preta de pó de carro, trancafiada num canteiro-prisão, com a terra seca que parecia mais sujeira de tapete velho. Mas sorridente, nada a interrompia, só subia ao céu que podia subir. A única vida ali silente, meditativa, contemplativa, coerente, agradecida, sabedora de todo mistério da vida. Eu abracei a árvore e senti ser ela. Ela olhou para mim, verticalizou minha coluna - meus pés puderam andar até o ônibus, subir as escadas, desmoronar num banco, suar e derreter sem nojo, dormir trajeto e aportar em casa. Em casa, sim, pude encontrar os lagos frescos que eram de minha sesmaria e me afogar do dia sem medo de perder o ar. Ali, todo o aconchego. Não chora, não, neném. Não chora, não.


terça-feira, 22 de março de 2016

Lembrete



Não matar um leão por dia. Domá-lo sem chicotes, conectando. Olhá-lo, farejá-lo, mostrar dentes, abrir a goela e ver Deus nas savanas do Eterno. Se for preciso, fazer morrer, diante de Narasimha chamar a proteção e agradecer por ter seu umbigo aberto pelas garras do leão e rir com a guirlanda da matéria em volta de sua juba. Renascer. Nós estamos juntos nessa experiência da transmutação. É premente adentrar o grosso com o feixe de luz mais elaborado, irradiar a potestade de seu canal e trazer ao sutil a alquimia de seu ser. Atman, Eu Divino, Eu Sou, Ser Crístico, Ser Búdico, Ser! Para ser, se proteger. Saúdo minha coroa com o amor de milênios, vou aprendendo e não tenho mais tempo de parar. Quando acham que eu paro, eu contemplo. Mas me permito ao movimento. Vibramos, somos átomos frementes a libertar nossas frequências. Abre para o que é bem as comportas de sua luz e encerra o seu templo para aqueles que querem destruí-lo – mas se assim for, coloca bem na porta, do lado de fora, uma chave secreta, que em uma intenção certa poderão decerto abri-la se juntos estiverem à Verdade. É só querer. Nasci e renasci para dar a mão e peço desculpas quando não consigo. Me treino acrobata sabendo que se caio, voo. Se bato no chão, renasço. Tudo está certo, somos eternos. Performar criando zonas de contato, pra entrar no abismo do outro e cair em si. Em meu circo, quando tudo pega fogo, a lona vira pó e é possível ver o céu estrelado. Daí nem domo mais leão, deixo correr, como eu, rei de mim, servo do todo. Corro até bocejar. Quando simplesmente bocejo, já equilibro minha energia no todo. Pra olhar no olho e dar a mão é preciso se imantar com intenção. E tudo é trabalho. Dar a mão a mim, a minha criança, ao meu velho, saber que o mesmo rio que nasce lá é o mesmo rio que deságua no mar; não há tempo. Lavar-se nesse rio. Lavar a cabeça e o coração. O coração deve estar puro, seu presente ao divino. Não permitir que ele possa ficar sujo é o maior trabalho, para dar de presente o melhor, ser presente, aqui e agora.


Moinho



O mundo é um moinho. Mas nem todo moinho precisa ser combatido. Diante de um campo de tulipas, num outono laranja, enquanto folhas caem na apoptose da vida, ali está o moinho. Simples, forte, constante. Eu prefiro sentar ali e sentir o vento, deixar meus pensamentos irem embora em boa hora e ficar a sós comigo mesmo. O moinho gira e me lembra um relógio, mas não marca, não evidencia a matemática dos números; ele apenas gira, é o tempo de contemplação, sem preocupar. Não serei um herói caduco a enfrentar o que também pode ser poesia, a mente tem que ser destinada ao sutil. Me questiono, me posiciono e deixo ventar. Ele ali está pra isso, gerando força pra moenda, motriz, motor do instante, trabalhando à serviço, filho de Oyá.

Vem cá



A mulher, dorida do mundo, deitou em sua cama dura e se pôs a chorar. Naquela noite recusou o amigo, o trabalho, a presença, o presente. Abraçou-se com dó. Doía-lhe a cabeça e seus pés eram duas âncoras lançadas ao mar. Depois parou de chorar porque não teve mais forças. Já era toda mar. Ficou confusa, olhar vazio, olhos inchados, teve mais pena de si, evitou o espelho. Evitou a espada. Não conseguia, era muito. Seus cabelos não estavam arrumados, naquele dia não tinha tomado banho, sentiu-se impotente e até ligou a televisão. Sentiu o estalo da energia estática chamando os pêlos do braço e se afastou. Não queria contato. Adormeceu, deitada em cama dura. A programação do canal saiu do ar, era alta a madrugada. Apenas o apito do som catódico no ar e a luz de azul mentiroso, consoladora do aturdimento solitário que o aparelho provocava: falso colo de mãe. Mas dormiu e foi pesada, suas âncoras ainda buscavam o fundo, rompiam águas, verticais.

Quando o estrondo dos pés tocou a areia mais profunda do mar que adentrou, o chão tremeu sutil e ali, pôde acordar e abrir seus olhos. Primeiro, em um lampejo de milésimo, fragmento de tempo escasso, olhou bem de frente para si mesma, em imagem contida num grande espelho bordado de brilho. Em uma mão uma rosa, na outra, uma espada. Estava soberana e forte como sempre e foi bom lembrete rever-se assim. Mas foi breve, pois o susto havia tomado-lhe de assalto e seus olhos fecharam com espanto de persianas. Abriu novamente os olhos e nova consciência. Ali viu em sua frente uma criança. Criança do mar, com algas escuras entre os cabelos, cracas nos cotovelos, crinóides nos joelhos, corais em suas pequenas unhas. Coração de vela de nau. Na ponta de sua língua se fixara uma pérola perfeita - a criança só devia mesmo fazer uso de boas palavras para ter consigo tão perfeita joia. De fato, as primeiras palavras que a criança do mar destinou à mulher, estendendo as mãos num gesto de borbulha, foram doces e foram assim:

- Vem cá, tia! Vem cá, tia. Vem cá, tia...

E cada palavra, ao mesmo tempo que era muda de som, ecoava reverberando em sua mente. Não era coisa de tele-visão, era conexão de tele-empatia. E quando a mulher confiou suas mãos desconfiadas às mãos escamadas da criança do mar, respondendo ao convite, algo de único se deu nesse encontro. A mulher foi arrastada veloz nadando baixo pelas areias, levantando nuvens de finos grãos como uma arraia festeira normalmente faz. As âncoras tinham ficado para trás, como um marco, um registro de renascer.

- Vem cá, tia... - repetia a criança do mar.

- Mas estou indo, pode me levar! - respondia a mulher já sem temer. Era bom nadar.

Ao chegarem em frente a um cânion submerso, com profundidade maior do que havia experimentado naquele mar já tão gigante, a criança com um sorriso de brilho e um olho de peixe fez sinal com a cabeça, em novo convite: entrar naquela fossa abissal de escuridão, com níveis aparentes - como edifícios incrustados nas pedras, se assim a mulher pudesse realizar uma comparação - e também com um fundo que não saberia calcular. Não teve jeito: o sorriso de uma criança do mar é o convite mais sincero e ali, já salgada de tanto mar, não tinha nem desejo de recusa, nem lembrava de cama, de choro, de dor.

- Vem cá, tia...

Deram mãos. Foram, agora mais lentos. Mais fundos. Tinha no movimento algo de respeito, de ir com calma. A luz foi rareando; vez em quando passava um peixe de faixa neon a brilhar um mistério distinto. E foi tudo ficando mais escuro, a cegueira foi se experimentando nos olhos e também não vinha desespero; um empuxo os enredava, era tudo muito lento, era tudo muito sal, era sim colo de mãe. Fechou os olhos e dormiu nadando. Se ali houvesse tempo, seria coisa de anos.

E quando foi chegando ao novo fundo, onde a criança do mar queria chegar com a mulher, a luz verdadeira e azul foi dilatando, o chão de prata foi irradiando e o som de berço foi soando. E a criança abraçou a mulher e coração com coração se parearam, num choque de cura, peixe elétrico. A mulher ganhou espada, espelho, rosa, cabelos de estrela do mar e um maracá de conchas sublimes. Seus olhos também de peixe: só assim poderia mirar aquele mundo d'água para se lembrar.

- É só tocar o maracá, tia! - ensinou a criança.

E ela girou o maracá, tocou o segredo das conchas, abriu um portal, o mar vibrou, tudo mais se acendeu. Já não tinha mais criança por perto. Só pôde ver sentindo. Mãe D'Água estava em trono soberano:

- Essa rosa você me entrega... Vem. Senta no meu colo, quero te revelar um segredo...

A mulher sentou e era só paz, nada mais podia ser. A Mãe tinha seios muito fartos e eram macios de se encostar a cabeça. Seu coração era o que fazia toda a vida do mar pulsar. A Mãe tirou um espelho de mão de seus cabelos e mostrou à mulher seu próprio reflexo. Era ela ali aninhada no colo a criança com algas escuras entre os cabelos, cracas nos cotovelos, crinóides nos joelhos, corais em suas pequenas unhas. Nem se espantou porque a isso nem mais se permitia. Deixou invadir seu ser apenas o sentimento de alegria e ali só queria morar. Se encaixou mais ainda no colo e a Mãe quis mostrar algo mais sério. Pegou uma ostra muito grande mesmo e pediu para que a mulher a abrisse. Ela tentou, tentou, tentou, tentou, usou de força, mas suas mãos não davam conta. Ficou ali por longo instante a machucar unhas e a própria ostra que era dura. A Mãe observava. Ali estava um segredo primoroso e ela não conseguia saber. Foi ficando cansada, abraçou-se com dó e chorou mais. Olhou para a Mãe, pediu desculpas.

- Veja só como tenta abrir o meu mais querido presente a ti, peixinho. Sinta como você se coloca diante desse mistério... Não será com suas unhas, com suas mãos, com seu desespero. Uma ostra se abre com o coração. Você ganhou uma espada, não é?

A mulher-peixinho-criança-do-mar novamente se apressou. Era a esperança atropelando. Já ia utilizar a ponta da espada para abrir a ostra, mas a Mãe D'água a paralisou junto com as ondas na superfície:

- Essa espada não é para a ostra. É para o seu coração. Aponta para ele. Não tem fio de corte, não mata, faz viver. Usa como chave, não teme o que o brilho da verdade resplandece em teu juízo.

A espada então, calma e respeitosa, perfurou seu peito e ali o peixe se debateu. A Mãe entoou um cântico - as ondas dessa frequência perpassavam o buraco que havia sido feito no coração. Deu ali dor de barriga, anseio de vômito. Mas mesmo assim tudo se tranquilizava.

A ostra se abriu lentamente e nela o grande ensinamento pôde ser observado. Dentro da casca dura: o quarto da mulher, a cama dura, o choro, sua vida, cada segundo, de vidas de trás, do agora, lá da frente. A mulher viu-se areia processando um trabalho meticuloso ao qual foi destinada a cumprir. Trabalho único. A pérola nascia de um grão intruso, era bruto, era feio, era pequeno. Mas era ali o começo da pérola. A Mãe, então, despetalou a rosa oferecida, comeu duas de suas pétalas e com as que sobraram, fez unguento para o coração da mulher-peixinho-criança-do-mar-pérola-preciosa. Continuou cantando e usando as pétalas para curar. Mãe D'água pediu para que ela dissesse alguma coisa. Era preciso. Dali saiu uma bolha gigante e da ponta da língua, cuspiu uma pérola.

- Já sabe do segredo? Trabalha, paciente, forte, respeita. Lava com sal o início de grãos intrusos - cada um só pode fazer uma pérola. Já tem a sua. Trabalha somente nela. Um dia outra criança te buscará e te levará para entregar o seu trabalho pronto para o Soberano, a Força Maior. Coloco essa pérola agora dentro de seu peito, sente. Fecha os olhos. O peixinho mereceu. Está mais perto de você para que possa lembrar, olhar, fortalecer, saber que em seu peito não pode mais entrar o que não faz parte de seu trabalho. Olha no espelho quando for preciso: traz contigo a espada, a rosa e o maracá. Gira teu maracá encantado e acorda agora: volta a sonhar. Mas sonha lúcida. A realidade, peixinho, é aqui.

E cada palavra foi bolha, foi canto, foi a pureza nunca antes revelada. E tantas bolhas se amalgamaram que formaram uma maior ainda. A bolha envolveu a mulher, que já adormecia lenta. Foram subindo com o canto da Mãe, subindo, subindo, até estourar na cama e fazer barulho suficiente para acordar a mulher - ou trazê-la de volta a esse sonho. A programação da televisão já tinha voltado. Naquela tela, uma imagem de um veleiro ao mar. Em seu quarto, um perfume de sal preenchia o recinto. Foi fácil respirar.

Pasto

Não estava nem aqui pra isso. Não sei precisar o pra quê. Nunca precisei. Precisão cirúrgica no instante das coisas, aliás, nunca foi a minha medicina. A minha sina mede a energia dos fatos e já é difícil por bastante percebê-lo. Por isso uma medicina. Por ter que prostrar-me diante do movimento do momento, parar tudo dessa engenharia de tempo, queimar os véus mais densos com fósforos que me queimam também os dedos e por fim, poder me olhar cru como ave recém-nascida e sinistra e frágil e linda por detrás das alegorias. Todo olhar-se é espelho e também se faz como cura. Não é o olho que olha. É o dentro. Quebra toda a argamassa mundana do que a mente emana e eletriza todo o vácuo que se torna o todo.

Sinto em mim o peito de São Francisco de Assis, mas me adensa o falo vermelho de Exu. Sigo rindo. Passando as mãos pelas costas posso sentir os poros dilatados dos quais saíram, um dia, penas. Não tenho pena de mim. Mas sempre estou sendo punido. E ungido, e abençoado. O mundo é um tapa e um aperto de mão, um trato, um tato. Sigo eu mesmo me flechando em sangue, me caçando pra me comer, na egofagia, na emboscada de ser meu maior inimigo. Sou o composto delirante que une treva e luz - buracos que flecho e escapam a pura energia branca do plasma e buracos que fecho e escarpam distâncias do que busco. Mas quem se deita comigo em gozo na lama mundana? Meu amigo eu. Sufoco no amor de cobras retorcendo em mim, estrangulando esse eu que me ama e jogo a casca na composteira dos dias. Doo a dor às minhocas, que tem sabedoria em transformar tudo em ar pra terra. Depois refaço-me, refascino-me, me assisto refacista e me abraço, melhor amante. Luto contra e amo mesmo, tem que ser assim. É como se fosse coisa de brincar de gangorra, indo ao céu e caindo na vala, rindo e chorando nas parábolas ascendentes e decrescentes das linhas de meus lábios frios. Tem essa história de que fomos e seremos sempre poeira de tudo, mas não me acostumo. A minha sorte é que a anima que me galopa. Trota em mim todo o desejo e também o Ser. Sou cavalo, cavalgadura e aparelho, esse corpo que traz consigo a fagulha do imortal. Agora esqueci meu corpo – não deitei na cama. Quis ficar nessa imagem da fagulha. Isso vai me ajudando. Essa coisa de corpo pesa. Volto lá naquele pássaro recém-desovado, com o pouco de pena colado de gema, vendo o mundo sei lá com que olhos, esperando o vento que vá busca-lo ao voo. Estou ali no ninho, incontinente, minha mãe pássaro é o mesmo que Deus, me mostra o que tenho à volta, como devo piar, cantar, voar, comer as minhocas que alimentei, fugir das cobras que se enroscam em amor perigoso. Cuidado com a cobra, que traz segredos e mistérios, mas traz a língua bifurcada, diz de dois modos o que a ensinaram. São Francisco me visita, me dá seu dedo como um galho firme. Exu passa e sente fome de ovos. Dali voo. Voo de Dali, tudo me derrete, o tempo derrete porque não mais me existe. Derreto e sinto o luxo de entregar-se à esfera – talvez ali.

Teve essa coisa toda de santo, em mim ficam aquelas imagem dos olhos ao alto, orações também ao alto. O expiar dos santos revela a quem vê na superfície uma vida de sacrifício e resignação. Mas por trás há gozo, deleite do pós-trauma. Eles sabem sofrer e depois rir como se fosse piada. Nunca gostei de piada. Me contam e eu forço riso pra não chatear. Eu rio de cada coisa que nem acreditariam se eu fosse rir agora. Mas não estou achando graça, ainda estou lá no expiar dos santos. Tenho a impressão de que é como eletrochoque, algo que perpassa em descarga e depois ilumina. A dor é tanta que tudo o que é ruim vai por baixo, a alma corre pros braços do Pai. Ou Mãe. Ou esse familiar que não tem palavra. Ficam nas catedrais os vitrôs doridos, por mais que coloridos. Mas o espírito deve ficar rindo de alguma coisa por trás.

Não estava nem aí pra isso. O próprio contínuo de letras atiça o pensamento de fluxo e num empuxo a correnteza leva. Quando isso acontece, é necessário dar pirueta, ser acrobata, pra retorcer e descobrir mais por si enquanto é arrastado. Se uma onda me levasse, não ia só deixar-me, ia fazer movimentos, balé do afogado. Ia ser um exercício. Compôr partitura corporal pra ninguém ver. Seria luxuoso poder mexer os braços e as pernas num desespero também controlado. Sempre à noite, constante em insônia, me projeto para lugares que preciso visitar. Às três da madrugada, vou à estrada, entro na mata, vou até uma baleia a cruzar o Pacífico – de um ponto onde nem se vê ilha – debaixo do holofote de uma lua. Vejo parentes que dormem com o rosto amassado, o porteiro da minha primeira escola roncando. Me colo na parte inferior de um avião que cruza a Índia, me agarrando pra não cair. Me pouso no cume daquela montanha que ninguém nunca foi – ali mora um buda. Tudo isso me traz paz, vou mesmo. Não me trato com imaginação. Minha medicina é ir mesmo onde a mente poderia me sabotar e ditar que é mente deslizando imagem. Tudo o que quero faço. E é de verdade. Tanto que dói. Há dois dias levei uma preta-velha na casa dos pais. E eu estava aqui, distante. A única dúvida é que ela tenha me levado. A minha seara de códigos é algo a me debruçar. Tudo me assusta porque é sem limite, mas tudo me abarca porque não tem jeito. Preciso entrar mais. Nunca cruzei um lamaçal, mas deve ser assim. É, é assim mesmo. Acabei de ver, de ir, de me arrastar lá. É como cruzar esse lamaçal, tal qual mesmo, porque é difícil chegar ali, a dois passos do que era antes. É persistência a palavra que procuro na lama.

Quando eu era criança a gente era de visitar família. Comia pêssego em calda depois do almoço com aquele tio que hoje nem me preza. Porém, hoje me visito mais. Como também e me empapuço com o que me preparo. E me prezo bem, parece. Essas visitas têm me feito bem. Na verdade, eu devia morar mais comigo. Quando a gente quer colo, não precisa chorar. É só pedir. A criança que não chora, sai ganhando. Quando morri das outras vezes, pedi colo também. Lembro daquele bicho com dente grande me entrando unha na carne e eu indo embora, sem acreditar. Ali chorei, mas também ganhei colo. Eu preciso te contar algumas coisas, mas enquanto não as descubro, sou verborragia porque ajo no agora. Não devo ser o máximo do interessante, mas preciso me contar pra mim mesmo, senão me perco. E me perder não seria bom caminho – já que tenho me visitado. Preciso voltar pro meu corpo, meu corpo inteiro. Será que há algo – que esse algo? – entre o espírito e o cavalo? Quanto pasto.

Mãos de Fada

Este conto, intitulado MÃOS DE FADA, integra a coletânea A POLÊMICA VIDA DO AMOR, publicada pela editora OITO&MEIO e organizada por Flávia Iriarte e Daniel Russell Ribas.

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Mãos de Fada


Silvana, mulher viúva, depois de 43 anos de casamento, descobriu-se apaixonada por sua grande amiga Eunice. As duas estreitaram seus laços após a morte de Adolfo - marido de Silvana - e a partir de então se frequentavam quase que diariamente. Moravam próximas uma da outra, numa rua bucólica de casas bem cuidadas. Do lado de fora da janela, as árvores faziam parecer que moravam muito distantes de qualquer burburinho de cidade grande.

Participavam juntas de muitos cursos promovidos por uma ONG que se localizava perto de sua rua. Gostavam de distrair suas cabeças ociosas. Corte e costura, culinária inteligente (onde se aproveitavam cascas e talos para a feitura de massas de pães com alto valor nutricional), economia do lar, artesanato (lindos os portas-jóias que as duas faziam com guardanapos coloridos e colados com habilidade, sem bolhas de ar) e diversos outros trabalhos manuais com passamanaria, rendas, aviamentos e sininhas. Tinham intimidade com tudo que suas mãos podiam realizar. Uma elogiava o que a outra fazia: você tem mãos de fada.

Silvana se dedicava em fazer bolos, trufas de sabores licorizados e caldos bem temperados, que levava sempre à casa de Eunice. Eunice, por sua vez, fazia empanados deliciosos, bolinhos de chuva e empadões de palmito, frango e champignon, que levava sempre à casa de Silvana. Não tinham vontade nem necessidade de fazer para outras pessoas, já que moravam sós e não precisavam vender o que produziam para aumentar a renda de casa (como bem orientavam as professoras). Gorda pensão dos falecidos.

Visitavam-se com abraços e beijos queridos. Silvana sabia visitar também em pensamentos. Não falavam dos falecidos maridos, nem fotos nos porta-retratos evidenciavam uma vida passada. Abriam suas portas, bem arrumadas e cheirosas. E rasgavam elogios junto com pedaços de papel crepom para um trabalho manual de colagem ou folhas de couve pra um cozido que preparavam com batatas bem servidas.

Silvana não entendia muito bem o que acontecia, pois nunca havia sentido essa estranheza que saía de sua cabeça como um alimento quente que sai do forno e espera ser conduzido à mesa pra se degustar. Ela ficava à noite em sua cama, matutando para definir-se, até que entendeu, por sua experiência de vida, que liberdade e vontade deviam andar juntas. Decidiu então assumir-se amando e não sentiu nem um pouco de vergonha quando se olhou nua defronte ao espelho para analisar-se como mulher apaixonada. Viu uma mulher diferente da que se entregou a Adolfo, passadas algumas décadas que agora estavam turvas de poeira. Uma entrega talvez não por paixão, porque este sentimento que experimentava agora era muito nítido e bem diferente daquela felicidade de ver-se casando. Ela sentia-se vigorosa em sua intenção. Percebeu que fora feliz porque havia erguido um sonho ao lado de um homem, sem muito se esforçar. Queria antes de tudo casar de branco, amamentar e aquelas coisas todas de sonho feminino antigo. Teve apenas uma filha (que agora morava num canto rico da Califórnia) e realizou-se rapidamente, cansando-se do sonho antes mesmo da morte separá-la de seu marido. Riu, ainda em frente à sua imagem, lembrando da jura de amor eterno que fez no altar, mas depois parou de rir por respeito. Entendeu também que amou, mas de outro jeito, pois sempre foi muito carinhosa. Viu-se atraente com sua pele pelada e pensou em Eunice de uma forma que não a constrangeu.

Nos dias seguintes, Eunice se mostrava com um brilho a mais em seu olhar. Seus pontos nos tecidos se mostravam muito bem dados e os desenhos de linha que ornavam as toalhinhas de prato eram de verdadeiro primor. Silvana, como sempre, elogiou.

Um dia, Eunice falou com Silvana que precisava compartilhar um grande segredo de confiança pra sua grande amiga, depois de darem um demorado abraço. Abraçar é um ato de se pôr entre braços e os quatro se acolhiam com intimidade. Eunice sorria, percebia-se sem jeito e perguntava se podia falar algo muito confidencial que ela vinha percebendo nos últimos tempos. Silvana gelou-se como em plena mocidade ao lidar com amor. Logo em seguida corou, pediu licença pra tirar um peixe com ervas do forno e, antes de ouvir a confissão, disse que colocaria uma música pra servir o almoço:

- Vou colocar um CD do Ray Conniff. Ou do Richard Clayderman! Esse eu adoro, é romântico... aí a gente conversa almoçando. Tudo bem? – perguntou Silvana com o coração acelerado, ajeitando o cabelo com a mão direita, mostrando unhas vermelhas bem pintadas.

- Claro! Tenho certeza que vai ser um ótimo almoço. Você é uma pessoa muito especial pra mim e quero saber uma opinião sua pra algo que venho pensando...

E assim o peixe com ervas tomou com seu aroma todo o espaço. Uma música melosa batida no piano soou como novidade. Sentaram-se à mesa, serviram-se e conversaram. Eunice, sem graça, disse que estava apaixonada. Silvana ouviu atentamente. Eunice começou seu discurso discorrendo sobre seus anos passados de casamento, dizendo-se não completa, mas sim sempre disposta em servir e ser feliz. Silvana balançou a cabeça, mastigando com lentidão. Eunice disse que precisava de rumos novos, de se doar a alguém de quem realmente gostasse e a quem admirasse, mas que deveria manter segredo por conta das duas filhas que às vezes queriam se intrometer demais na vida da mãe que morava sozinha.

Eunice comia fazendo caretas de prazer:

- Silvana, que delícia! Você tem mãos de fada!

Silvana ruborizou-se, apoiou a decisão da amiga e conduziu perguntas que levavam às respostas de que ela precisava. Eunice então pontuou, após elogiar o arroz com brócolis, dando sua última garfada no peixe delicioso e bebendo a limonada que merecia seu derradeiro gole:

- Sabe aquele senhor alto, distinto, o Cristóvão, que faz dança de salão comigo? A gente sempre se olhou demais... e eu tô apaixonada! Ele me pediu pra jantar com ele. O que você acha?

Silvana sorriu belamente (porque havia aprendido assim) e disfarçou seu desmoronamento com destreza:

- Ame, minha amiga. Ame. – disse, apertando com força sob a mesa a ponta da delicada toalha rendada que havia estendido para servir.

A Viagem de Alcemira



Alcemira decidiu ir com sua filha para a serra, visitar Neinha. Como não gostava de viajar, por ter medo de estrada e não confiar em ficar sobre rodas velozes, Alcemira estava nervosa pelo evento. Acordou cedo e passou o dedo indicador nos olhos pra retirar o excesso de remelas, já que andava com uma doença nos olhos e lacrimejava muito ultimamente. Olhou pra uma malinha modesta que havia arrumado na noite anterior e se lembrou num susto que ia esquecendo o terço. Arrumou-se, tomou um café-com-leite com biscoito maizena e começou a se preparar para a viagem. Passou um fio de água num pente fino e delicadamente penteou seus cabelos para trás, prendendo-os por fim. Sua filha, que morava duas ruas abaixo, ficou de passar às 11h em ponto pra buscá-la e antes de partirem em viagem, almoçarem num restaurante à quilo do bairro. 


- Mamãe, deixa de ser besta. É só uma viagem daqui até ali. Passa rápido e você vai ver como vai ser divertido. Neinha sempre pergunta pela senhora e agora as duas vão poder ficar batendo papo.


Chegando ao restaurante, a senhora pegou um prato muito pesado e quase deixou que caísse no chão - não fosse pelo reflexo da filha, que aos berros, recriminou a falta de força de Alcemira. Por isso, resolveu fazer o prato da mãe, perguntando o que ela queria e modificando todos os seus desejos.


- Não, nada disso. A senhora tá muito magrinha. Vou colocar um empadão de palmito e milho, sim. É gostosinho. Um caldinho de feijoada também...


Alcemira quase não tinha voz e força pra dizer que só queria um arroz com feijão e tomate, sem muita invencionice. Por fim, comeu o que a filha escolheu, empurrado por um copo de Coca-Cola - coisa que dona Alcemira definitivamente não gostava tanto.


Aí as duas foram pra rodoviária, com a filha reclamando das duas malas que carregava e questionando o porquê do peso das compotas que Alcemira levava à Neinha. Enfrentaram fila, compraram as passagens e, por sorte, o ônibus nem demorou. Sentaram-se confortavelmente nos primeiros lugares à frente e logo sentiram o poder do ar condicionado. Alcemira, que não tinha costume de viagem, começou a balançar as perninhas finas de tanto frio. A filha dormiu, de calça jeans e casaquinho à tira-colo. A barriga começou a doer do almoço e Alcemira se dirigiu lentamente até o fundo do ônibus, onde havia o banheiro. Por lá ficou uns 25 minutos. Quando a filha acordou e notou a falta da mãe ao lado, perguntou pra uma adolescente da outra poltrona se ela havia visto sua mãe. A jovem tirou os fones do ouvido, pediu pra que lhe repetisse a pergunta e disse que a velhinha tinha se dirigido ao banheiro. A filha foi à procura da mãe e quando abriu a porta difícil de abrir, viu Alcemira toda suja, chorando baixinho, com vergonha da diarréia. A filha, ao abrir a porta barulhenta, fez sair todo o cheiro da meia hora acumulada naquele cubículo.


- Ah, mamãe... que merda! Se cagou toda. - e disparou a rir.


A senhora constrangida pediu ajuda e a filha deixou a porta aberta enquanto ia buscar umas toalhas na bolsa. E dizia pelo corredor que a mãe não tinha jeito, deixando a par todos os viajantes nauseados com o cheiro da má digestão. Foram uns dez minutos de voz alta, exposição e limpeza. Tudo compartilhado no ônibus com deboche e mau jeito.


Alcemira foi conduzida ao seu assento, já limpinha, e não conseguiu olhar nos olhos de ninguém. Reclamou fraca com a filha que não devia ter comido o empadão com o caldo do feijão gorduroso. E com Coca-Cola - imagine! A filha falou pra ela parar de falar e descansar até chegar à cidade, porque agora era ela quem estava ficando enjoada com tanto verde, tanta árvore e tanta curva correndo na janela da paisagem serrana.


- Fica olhando as montanhas, mamãe.


Alcemira reclamou que não gostava de viagem, a filha arfou e seguiram pela estrada até avistarem a rodoviária, onde Neinha estava esperando com um lenço cor de abóbora na cabeça.


...


Ao chegarem à casa de Neinha, Alcemira logo de cara avistou um amontoado de bonecas velhas próximo ao portão velho, prontas pra serem levadas por crianças de rua ou um caminhão de lixo. Comentou e recebeu de Neinha a resposta:


- É, Mirinha... Menina se foi. Ta lá com Papai do Céu. Mas fazer o quê, não é?


A filha de Alcemira não havia lhe contado que o principal motivo da viagem era o falecimento de Zilá, filha de Neinha, uma menina de 32 anos que, por falta de oxigenação no parto, ficara aprisionada na cama sem compreender o mundo, se retorcendo e babando muito. A paralisia cerebral deixou a mulher aprisionada aos estímulos infantis. Ela só era chamada de Menina e Alcemira gostava muito dela. Por isso ela tonteou e recebeu a notícia como um baque. Uma lágrima escorreu e a filha não percebeu porque sabia que a mãe estava com aquela doença nos olhos. Mas quando Alcemira chorou como criança, murmurando palavrinhas de susto e doçura, Neinha abraçou e confortou a velhinha dizendo:


- É pra ficar conformada, Mirinha. Eu aceito o que Deus me dá. E Menina ficava presa naquela cama, dando trabalho, sem entender nada do mundo. Fiquei triste demais, era minha filha, mas sei que Menina agora voa com asa de anjo. E como não conseguia olhar pras bonecas dela, enfeitando o quarto, joguei tudo fora.


Alcemira pensava muito, mas pouco dizia. O enterro já havia passado e poucas pessoas foram. Ela queria ter chegado antes, pra consolar a família e se despedir de Zilá. O corpo que não parava quieto e vivia tenso e retorcido, agora jazia em paz.


Neinha então preparou um café muito ralo, quase intragável, que, para a felicidade de todos, veio fornido com biscoitos de polvilho muito bem feitos, torradas leves, uma broinha de côco e geléia de morango. Depois do café, Neinha disse que Alcemira iria dormir no antigo quarto de Menina e que já estava tudo arrumado pra recebê-la com o devido conforto. Alcemira, que tinha vergonha de tudo e achava que com tudo incomodava os outros, aceitou com pena, medo e vontade de ir embora.


À noite, pela madrugada, sonhou que Menina vinha lhe pedir a cama de volta, com três bonecas sujas no braço. Acordou querendo gritar o nome da filha, mas sua voz não alcançava força, apenas desconsolo. Tomou o copo de água que haviam lhe deixado no criado-mudo e resolveu dormir de novo. Pela manhã, acordou com os olhos fechados pelo excesso de remelas, não enxergando nada. Não entendeu onde se encontrava, em que cama dormia, ainda zonza de sono e estranhando o ambiente à volta. Por um breve instante, entendeu que todos os últimos acontecimentos foram uma soma de um sonho turbulento que havia tido. Aliviou-se, pronta com o dedo indicador a cutucar a abertura dos olhos. Sua mente foi despertando mais e depois ela entendeu de vez que a solução de seus tumultos não era pensar que tudo era um sonho, simples assim como nas histórias que ouvia quando pequena. Tudo era verdade, a mais pura verdade, tudo era a sua vida. E tudo se constatou com o aroma do café ralo da manhã e a voz de sua filha falando baixo à porta do quarto:


- Acorda pra cuspir, mamãe. Já são 8h. A gente tá na casa dos outros...


Varal

Neiva se encontra eufórica por ter acabado de conseguir roubar num varal perto de sua casa, a cueca de Lourival (um vizinho de rua que considera um homem muito distinto) e por isso está agora em seu quarto, trancada pra ninguém ver, com a cueca entre as mãos, lambendo o tecido vermelho de algodão e esticando o elástico frouxo que tem na borda superior. Passa a língua com mais infantilidade nos três micro-furos da cueca puída e lavada – delícia de cheiro de sabão em pó. Mãe Odalina que instruiu direitinho a moça a cumprir as tarefas pra amarrar seu homem desejado. 7, 14 ou 21 anos.

Segurando a roupa íntima do seu amado, pensa naquelas pernas grossas que se enfiam nas duas entradas que se têm para abrigá-las naquela peça barata. Como ela gostaria de ser uma costura pra poder abraçar aquelas coxas de jogador de futebol de campinho! Quase delirante, ela observa muito interessada o tecido deformado na parte da frente da cueca que, com certeza, abriga em seu bojo um volume desconcertante. Algumas linhas que estão meio soltas ela puxa com os dentes, absolutamente entregue à sua imaginação. Já uma etiquetinha feia que traz o nome da confecção, ela arranca de vez pra guardar em sua agenda.

Atestado

Recebemos o princípio da alma. Enquanto a chuva lá fora caía, aguardava ansiosamente o toque do telefone. Como não podia mais tocar com as mãos, o toque do som era quase vertigem. O atestado era claro: três dias de descanso. A alma estava ali pra se prontificar, pra quebrar a casca dura dos labores da transformação.

E quando passar o efeito do que acalma? O sono fazia carinho nas pálpebras (venezianas que abriam e fechavam como as de casa, protegendo da chuva lá fora); daqui, se protegiam minhas pupilas. Enquanto atravessava a rua, avistou um pouco receosa, um senhor passear com um leão do outro lado da calçada. Não teve medo porque àquela altura, sua vida se misturava com os sonhos e tudo o que desejava sonâmbula era rugir como as feras. Assustou-se com um bruto toque em seu ombro esquerdo. Acordou de seu sonho; era o telefone que a chamava, despertando seus versos. Acionou a tecla do viva-voz e proferiu a interjeição.

Tudo era uma seqüência incoerente dos fatos e seus passos estavam bambos ainda de sono, mas falava com voz rouca e doída de sensações. Em sua garganta o ar tremia as pregas vocais – simulava um estado mais precário quanto ao que realmente sentia. Lá fora a chuva ainda caía e o vento tremia as fiações dos postes.

- Quer um café? – parecia perguntar-se a si mesma enquanto via os pingos que partiam desesperados do quadro da janela cinza. O perfume adentrou o recinto convidando o paladar a testemunhar a presença do outro. Recebemos a finalização da alma.

Andrajo

Primeiro ele disse que se permitia. Que era dado à vontade. Observou o que dentro de si proferia pra entender qual rumo novo. Aquela voz taciturna que emergia do fundo de si mesmo, ditou a ele o que não era esperado. À princípio, levantou-se rindo do chão, querendo não acreditar. Mas a voz foi poluindo sua mente, o cenário foi ditando delirante. Zumbidos tronchos, martelando como megafones. A cabeça girando, girando e a voz controlando como a um soldado. Marche.

Eram doze horas no relógio de algum pulso. Ele não contava o tempo. Deixava que o vento e a voz o levasse. Mas agora ela o conduzia por ruas movimentadas, fazendo com que os carros testassem os freios. Ele esbugalhava os olhos, rasgava as roupas e vestia-se então de andrajos. Entrou na fonte de uma praça e ficou ali mergulhado o quanto pôde. 5, 13, 29 segundos. 12 minutos submerso na água lúgubre do chafariz parado. Nenhum transeunte notou. Nenhuma borbulha; o homem parecia inexistir.

A voz então ria e dizia pra ele relaxar. Ele disse que se permitia à vontade. Ela, que antes conduzia-o por estreitas cordas bambas sociais e levava-o do modo mais educado, portando orgulho e docilidade, agora dava uma rasteira no que ele se permitia. A voz não era só voz, era um ele perverso, um ele reverso. Nunca soube poder deixar-se assim e agora era só andrajos.

Saiu molhado do chafariz, bebeu uma cachaça do santo, riu de sua condição. Saiu durante dias andando sempre à frente, desviando apenas de prédios. Se visse rio, estradas, canteiros, passava por cima, por dentro, por tudo, rindo e chorando ao mesmo tempo, como nunca ninguém havia conseguido antes.

Adélia

Falei para Adélia não se importar, que dor passa com o tempo: 

- Dor de amor dorme de tanto cutucar.

Ela perdeu o viço, ganhou olheiras e se rebaixou em todos os quesitos. Tinha começado a fazer academia e tinha até comprado um tênis melhor pra isso. Abandonou. Não quis mais saber de nada. Não via sentido e nem tinha força. Simplesmente o seu casamento perdeu a liga. Mas ela ligava demais pra isso, seu marido era uma bengala. Pediu a separação e agora ela nem tinha mais notícia dele. Me parece que ele voltou pra casa da mãe e está ajudando por lá nas finanças.

A vida toda de Adélia era caucada na do homem. Se visitava Marilda - uma vizinha muito gorda e alegre que vive com cheiro dos salgadinhos que frita pra fora -, ela não se demorava. 

- Daqui há pouco Ivanir tá chegando, rodou o dia inteiro com o táxi. Aí ele chega, lava o rosto e já senta pra jantar. E tenho que passar no açougue, Marilda, porque ele não come sem carne. 

Um discurso comum.

Adélia ficou sem ir ao açougue por 23 dias. Nem conseguia fazer sua própria comida, porque o calor da beirada do fogão lembrava a comida que ela fazia pra ele. Cortar alho assobiando na pressa fazia lembrar de que o táxi ia chegar buzinando. Adélia não conseguia nem mais colocar a mesa se não fosse pra ter dois pratos. Evitava olhar pra concha de feijão, que ele pegava mais de três vezes pra se servir a cada refeição. Ela deixou de comer e ficou com olhos tristes e anêmicos.

Considerando o estado da penúria de Adélia, depois de dizer que tudo passa, fiquei pensando no que faz uma pessoa se entregar tanto. Não digo nem em relação ao marido, que isso foi só doença e cegueira comum. Eu penso nessa entrega das pessoas à dor da perda. Ela perdeu o chão e agora anda flutuando. Pra ela o tempo vai passar arrastando correntes pelo chão. Perder alguém, nestas condições mal estruturadas, é perder suas totais referências.

Vão se passar táxis nas ruas e ela vai olhar pra cada um com o coração sobressaltado. Vai à casa de Marilda e não vai conseguir ficar além do tempo. Não vai comer os salgadinhos dela pois vai estar sempre sem apetite. Vai ficar a maior parte do tempo em casa, atenta ao telefone.

"Há dentro de cada dor uma grande possibilidade de mudança", falou a apresentadora finalizando seu programa de reconciliações que passa à tarde na TV. O auditório aplaudiu calorosamente o desfecho. Eu, que estava junto, presenciei os dentes dela que tremiam na boca. Ela não disse nada, mas se eu pudesse ler pensamento, teria chutado que ela pensou "é porque não é com você".

Tomei o café que ela serviu - que estava ralo, uma água de batata, e por pouco não tinha posto sal. Engoli, fechei os olhos, bebi um copo d'água disfarçado e disse que tinha um monte de coisas pra resolver, mas que depois voltava ali. É que eu cansei de ver tristeza perto de mim. Deu relia. Foi uma desculpa tola quando me deu agonia.

O cachorro de anos, Cartucho, estava já meio abobado, querendo carinho, talvez até com fome. Adélia deu um passa-fora no bicho, me levou ao portão e ficou ali na calçada, de calça jeans e blusa cacharrel mostarda, olhando perdida a garoa que caía na rua de paralelepípedos mal estruturados.

Imaginação

Com que cuidado ele repousou o antebraço esquerdo na mesa ao abrir um livro que o consolava na noite? O corpo talvez estivesse cansado dos dias, mas seus olhos sempre abertos, dispostos a ver mais, sempre mais. Muitas folhas têm um livro, mas elas são varridas. Como ele olhou o futuro? Tendo um meio-sorriso no rosto, como o habitual? Expressando desejo? Eu vi um bocejo? Não, foi impressão. A imagem turva. Só vejo o que é curva na imaginação.

Vento

O seu nome era palavra feita sob medida pra vestir a minha língua. E o meu cabelo era o manto em que ele se envolvia. Dizia falar de um perfume que sentia nos fios, algum cheiro que o levava à infância. E era sempre pra ele depois do sexo um prazer, uma mania, cheirar profundamente os meus cabelos.

Ele não me tinha muito romance, muito carinho. Não me enchia de delicadezas enquanto me olhava, mas esse era o instante em que me sentia mais intensa. Era como se eu desse algo a mais do que meu corpo para um homem. Era uma necessidade minha entender que existia algum outro prazer em nossa relação.

Como ele talvez fosse o primeiro homem a registrar alguma sutileza que me chamasse a atenção, eu tinha uma necessidade de achar que o meu amor deveria ser entregue em confiança a este, que um pouco mais me conferia.

Um dia fui à beira do rio me banhar no sonho do sol e o vi com uma mulher conversando perto do areal. Seus corpos conversavam, dançavam e faiscavam num bailado, coreografados em sintonia e risos de gargalhadas. Eles se banhavam num canto de areia do rio que corria quase parado, com águas lentas a passar com desconfiança sobre aqueles corpos que ali maliciosamente se tocavam.

Não disse nada. Voltei a casa. Voltei a casa. Voltei a casa. Voltei ao espelho. Cortei todo o meu cabelo com uma tesoura que usava pra cortar a linha dos bordados. Cortei mais que fios desta vez. Cortei um bordado de sonhos. Que me deliravam no eco das batidas do peito, tanto o meu quanto o dele. Eu não disse nada. Nada. Cortei. Mais que fios.

Com as mãos trêmulas e vestidas de luto e frieza, juntei todo o meu cabelo cortado e misturei numa massa de bolo. Fiz o bolo que ele preferia. Proferia, profetizava, pronunciava palavras de raiva. Fiz o bolo que ele preferia. Com o cabelo que ele preferia.

Terminei o preparo do bolo. E coloquei num prato grande de festa, de servir sobremesas que os homens tanto gostam. Fiz o que ele preferia. Esperei ele chegar a nossa casa, cansado de puxar areia do rio.

A porta de casa abriu. E não foi o vento. Foi ele, no mesmo tempo e ritmo em que sempre a abria. Como conseguia?

Deitei na cama acolchoada que trazia ainda o peso que o nosso amor fazia. Careca. Ele antes de me procurar, cortou o bolo e comeu um pedaço. Sentiu nova textura e gritou. Novo paladar. Um que envolvia susto e inquietação. Abriu a porta do quarto e viu a mulher que agora se revelava. Morta, nua, decrépita e infeliz com seu amor barato. (Pausa). E foi assim que morreu o homem que eu tanto amava. Sangue. Corre um rio vermelho e lento. Foi ele. Não foi o vento.

Azinhavre

Quando Laurita enlouqueceu, perdeu-se numa escuridão sombria como se vivesse em sonhos pesados. As pessoas consternadas a olhavam: enquanto uns se resolviam em prece, outros a acudiam, como se resolvessem buscar a alma perdida pelo tato forçado. Em seus delírios quase vestidos de estertores, ela entregava-se a imagens que pareciam ter pertencido a outras figuras já mortas há séculos. Parecia abrir a picadas de facão um mato denso que abrangia sua consciência, como um bebê de músculos incontroláveis e animados, na semelhança das marionetes que viu um dia numa feira da cidade quando criança. Via homens estranhos com caras antigas e não compreendia. Rios que se abriam pelas paredes de cal da casa, velas que ardiam em vermelhidão sôfrega e sombras de seres que se adicionavam às reais. Talvez a todas essas imagens se somassem um solo de violino engasgado, uma luz gris, um exalar de café em pó de tempos perdidos. Mas isso tudo é impressão.

Sua vista avermelhada de repente se via coberta por um pano muito úmido e gelado que uma mulher nova e alta trazia à sua fronte. Como carimbada na pele fervente através do pano, a água parecia evaporar dos poros assustados de Laurita. Sua febre extrapolava as medições que o termômetro marcava e as preces ressoavam num coro de agruras.

Vindo de dentro de sua cabeça seca e quase oca, da sua garganta aberta e talhada de gritos, um estampido forte como o de um estrondo desconhecido arrombou o recinto e todos se calaram, com seus olhos amedrontados. Calmamente deixou seu corpo se desfazer em leveza poética, com uma paz repentina e sombria que somente era visto na paisagem pacata dos matagais que se abriam depois da janela. Duas senhoras que se dispuseram próximas ao seu delírio gritaram em uníssono, porém em vão, o nome da Virgem Maria.

A vizinhança sempre andou pela casa de Laurita e este episódio foi partilhado com dó, num pensamento único que martelava na cabeça de cada um presente em seu quarto. Não sabiam o que acontecia. Todos, sem exceção, sentiram um medo único enquanto Laurita sorria despudorada e despedia-se da lucidez. Pensavam naquela mulher que antes fazia tão honradamente seus afazeres e que dava aulas de corte e costura no salão da igreja. Fazia parte também do grupo de preparo das sopas para os abrigos católicos, mas no fundo participava mesmo porque contava com muitas amigas rindo e conversando enquanto fatiava fino longas folhas de couve, esmagava o perfumado alho e sentia seu cheiro, cozinhava o frango para desfiar ainda quente – as pontas dos dedos ficavam vermelhas, mas resistiam - e ouvia-se tão presente o chiado da panela de pressão engolindo o presente. Um quadro antigo com uma imagem de Cristo trazia um detalhe em ferro onde o azinhavre havia se instalado sem ser percebido, tanta solidão.

Todos esses e mais tantos outros retratos dos fios de memória eram acessados desordenados com toques de invenção. Laurita calou-se para todo o sempre e adquiriu uma impressão de pássaro, tendo seus movimentos tornados em descabidos espasmos de vôo, incompatíveis com a mulher que se mostrava firme há alguns anos corridos.

Quando perdeu de vista os domínios e limites de sua mente, se entregou a um vôo livre e incessante. Seus pousos não eram corriqueiros, pois o vento, o ar em movimento, rompia e adentrava levemente seus tímpanos e ela ouvia essa gradação de sussurros secretos, como estímulos e ímpetos pra voar cada vez mais. Era como uma correnteza forte que a arrastava densa. E nesse bater de asas não percebia que sua energia se esvaía e aos poucos quedava leve e endurecida. Era perigoso percorrer correntes que não conhecia, mas seu desejo se perdia de controle e ela esvanecia como um pássaro doente que se deslumbrava nos ventos das terras estrangeiras. Alcançava um outro país num piscar de olhos, numa transição angustiante pra quem assistia. Mas ela sugestionava felicidade. De um jeito distinto, alheia às satisfações de antes, do cumprimento de tudo bem feito. Sua cabeça e seus olhos adquiriram uma agilidade de um bicho inocente.

Laurita, que era viúva, não sabia mais quem era o homem da foto que estava num porta-retratos sobre o móvel de madeira marcada em seu quarto. Às vezes achava que conversava com ele diálogos sem muito calor – mais pausas de espera.

Seus movimentos se aquietavam vez em quando e ela se tornava uma estátua de paz, confusa, esquálida e com olheiras doentes. Muitos disseram que a morte do marido foi o início da tonteira dela. Outros disseram que não imaginam como ela foi parar ali, naquela estampa esquecida.

Sua filha única, solteira, alta, calada e imponente, viu a mãe adquirir trejeitos de andorinha e mudez de uma flor morta. Por também ser íntima da solidão, passou a dormir com a mãe e a cuidar generosamente dela, num trato que nunca precisou pensar em estar exercendo. Mas a vida sempre foi bem aceita por ela em todas as circunstâncias.

Numa mesma cama, numa mesma noite fria, onde o silêncio machuca o momento só e se camufla de zumbido, duas pessoas enveredadas em suas cascas estão cobertas de sono. Cuidou de sua mãe nunca se lamentando. Talvez por temer a Deus ou a si mesma. Laurita transformou-se em seu despertador de todos os dias. As fronhas ficavam muito babadas. “Vou lavar”, pensava a filha. Mas se lembrava que era inverno e que não tinha sol que facilitasse secar. Precisava comprar mais fronhas e tantas coisas mais que se perderam nos desejos que morriam prematuros. Era sempre difícil sair de casa. Quando a filha fazia compras, uma vizinha ficava e, se precisasse, trocava a fralda com terrível pena. A filha voltava rápido à casa e organizava as latas no armário com excessos de regras sobre si mesma.

Cultivava prazeres ínfimos. Fora os momentos em que se dedicava ao zelo pela mãe perdida, ela se distraía com a televisão, que a hipnotizava numa outra espécie de loucura e entrega. Um abandono imperceptível que beijava suas pálpebras inexpressivas. Ptose. Passou a comer mais pão, a engordar e esquecer-se de quem era antes. Não resgatava a si nem pelo hábito de rever fotos de família. Não ligava. Às vezes, depois de um banho, secava bem os cabelos limpos e ligava a televisão que iluminava o espaço com um azul nuvioso. Aproximava seus cabelos da tela pra que a energia estática acariciasse seus fios com sedução elétrica.

De vez em quando um choro moído percorria as penumbras da filha, mas ela logo tomava jeito e se lembrava que não devia chorar. Pensava no mundo pelo qual sua mãe andava e às vezes sentia um pouco de desejo de estar como ela, pois sua mãe parecia realmente viver amena e livre das angústias às quais ela se dava. 

Laurita e sua filha, para os outros, pareciam tranquilas e entendidas. As pessoas não enxergam muito o que há por dentro de tudo. Todos viam os méritos daquela relação de cuidado e conformidade. Hoje, uma panela de pressão chia na cozinha de sua casa. O botijão de gás traz uma capa antiga com babados vermelhos. Laurita a tem há muito tempo. Sua filha sempre pensa em se desfazer, mas logo hesita e prefere deixar tudo como está. “Mas as paredes de cal precisam de um retoque”, ela sempre se questiona. “Hoje teremos sopa”. Ventava forte e as folhas se despencavam em apoptose, em apoteose por aquela tarde, quase noite.