quarta-feira, 24 de maio de 2017

Alma



Alma de roçado, um casarão em que a madeira estala, uma música triste cantada ao redor da fogueira, a água fria que lava o rosto antes do sol que se anuncia. É feita de couves e macaxeiras, de cabelinhos encaracolados do chuchuzal que dá a sombra, de chuva fina amaciando o solo, da umidade do banco de pedra. Traz um cheiro de tecido guardado, alfazema e banha de porco. Alma de fogão à lenha, panela cheia de canjiquinha, tacho quente do doce de fruta, figo em calda e mamão bem escolhido. Alma de poltrona, de ida ao cemitério, de parto de um potro, lembrança de uma tia velha, de lavar lençóis e de quarar, de cantarolices de igreja, de fado trazido de longe pelo dono da mercearia, de cantiga revolvida dos tempos idos. Se esconde de noite depois de deitar os filhos. Alma de pio de pássaro, que ora, que sente o peso de tanta subida, por montanhas, alma de cabra, alma de leite, alma adoecida. Alma de bom dia em vilarejo, carinho na vaca, reclamação da lama, troca da saca de farinha pelo café colhido, mexerica e manga na mão. Alma de calçada frente à casa, triste alegria, de sorrir com o dedo de prosa e com festejos de violões. Alma que ara a terra sonhando com o passeio de tílburi, que dá o resto ao cão, que olha para as crianças não querendo olhar relógios. Alma que não dança bem pois se envergonha de querer dançar, bolo de fubá como tesouro dos dias, papa de milho que dá trabalho e ninguém ao lamber dos pratos elogia. Alma de capim entre os dentes, de chá de carqueja, poejo e pejo. Alma de galinha fedida no galinheiro, de fritar bolinhos de queijo curado para a quermesse, de olhar o balão subir como quem vê Deus acenando, de ida ao rio molhar as pernas, de sexo tranquilo em cama de mola premeditando mais um filho. Alma de costura e linha, de hálito cansado, um olho mole de amor e o outro rijo. Alma de clara em neve, roncar de cadeira de balanço, de cuidar da velha mãe, de varrer os farelos de pão torrado, do brilho excelso do chorar da lamparina. Alma de segredo, de grito interrompido, de cordialidade, de dever comprido. Alma de ciranda buscando dar mãos a todos, estar visível, não ser risível, de ser razoável, de ser o bicho. Alma de luto, sem luta, de labuta, cheia de riso e mão tapando a boca, sons comedidos pelos olhares na sala, alma de lata de biscoito, alma de broche, de colar guardado na caixa de ferro comido. Alma de três, de suor, pires lavado, de boneca cerzida pra mais nova brincar. Alma de antes, de mofo e silêncio, respirando pela boca o ar de esporos antigos. Alma de flores no vaso de vidro, de leque rendado a espantar mosquito como o rabo do boi que abana em chicote. Alma de azevinho, de óleo de essência, de óleo de rícino, de dobradiça em ferrugem, de linho comprado novo pro vestido da fotografia. Alma de janela, de cortina pro vento, de tique-taque ansioso reinando no ar vespertino. Alma de varanda, de bananas maturando, de água de poço, de criança em febre alta e doutor sem esperanças. Alma de lusco-fusco, da hora da Ave-Maria, de ângelus, terço, creio-em-deus-pai, pé no chão conectando, de minhoca cavucando, de visita dominical ao parente, de abraço sem jeito, de histórias contadas pra relembrar quem se é, quem nunca foi, quem sempre será.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

o outro

O outro sente saudades do outro, sente desejo de comer um churros, carrega sacolas de uma vida que lhe pesa, suspira pelos cantos e limpa o pó das imagens do seu altar de fora, solta farpas do atrito entre as madeiras tremendo, se enreda no passado olhando pra uma lua que já sempre foi aquela. Joga fagulhas na floresta seca pra dizer sem dizer as sementes que quer ver nascer. Fica cabisbaixo como lesma no cenário triste, reclama das coisas que estão a seu alcance, quer ir pra longe, se renovar, criar asas novas, a partir de desejos velhos. O ninho não basta pro bicho que não consegue se conter. Brinca de esconde-esconde e acha que é engraçado buscar as sombras pra não ser visto e depois gritar pra dar o bote e ganhar o jogo. É preciso ainda andar muito pra se ver voando de verdade. A cada encanto que se desdobra, o outro se dobra, como dobradiça de porta deixando o que quer entrar. A troca se dá na filigrana e nos mistérios que ninguém sabe. Não corta a corda poída que amarra o barco por teimosia. Fica baloiçando querendo morrer. Tudo é poço se não tem controle do balde. O outro quer sair correndo pelo mundo, quer dizer mas não quer matar a mim. A mente do outro é do outro, por isso nem me comovo, já aprendi que nada faço: que seja. O outro deixa o mundo que deseja pro dia de amanhã, mas a sua mente vai na rede de arrastão e não sabemos em que onda nova tudo morrerá.